6.6.04

Introducing Mr. George Hardem

Toda família tem suas histórias bizarras, causos estranhos e lendas a respeito dos antepassados. A minha tem várias, principalmente do lado materno. Afinal, é um pessoal que veio da fronteira, terra de ninguém, palco de disputas e destino de fugitivos. Pois a minha história preferida fala justamente de um fugitivo. É uma história fragmentada, com muitas lacunas, então eu as preenchi ao meu bel prazer...

Há muitos anos atrás, ainda no século XIX, existiu um comandante de navio chamado George Hardem. Ele era inglês, nascido em Londres. Não sei como passava seus dias, mas acho que quando não estava no mar, gostava de tomar uns chopps no pub e paquerar garotas no Picadilly Circus em domingos ensolarados.

Fora isso, era apaixonado pelo mar. Consigo imaginá-lo na proa do navio, de roupa azul, chapéu branco e cachimbo na boca, a olhar o horizonte sem fim. Nessas horas ele devia suspirar fundo e filosofar sobre a vida. Qual o sentido de tudo? De onde viemos? Para onde vamos?

Para onde ia George Hardem? Ele singrava os mares, aportava em novos lugares, conhecia muitas pessoas. Definitivamente, ele não podia reclamar da vida. Até que um dia...

Um dia, uma tempestade cruzou seu caminho. A tripulação corria aflita de um lado para o outro, os cavalheiros rezavam, as damas desmaiavam. Foi a maior tempestade que George enfrentou em todos os seus dias no mar, e estes não foram poucos. Ele usou todos os seus conhecimentos, todas as suas manobras, todos os seus homens. Mas o navio não resistiu. O casco rachou e o naufrágio era inevitável. Todos correram para os botes, onde ficariam a deriva, à espera dos barcos de resgate.

Naquela época, os códigos do mar eram severos. Esta aventura não teria um final feliz para George. Ele deveria afundar junto com o navio. Eram as regras. George sentiu um aperto no peito. Era um homem honrado, e como tal entendia que este era seu dever. Mas ele queria viver. Queria atravessar outros mares, conhecer outros países. Queria formar família, e passar para seus filhos o amor pelo mar.

Quando enfim todos deixaram a embarcação, George ficou sozinho na proa, olhando seu navio afundar lentamente. Parecia que este seria seu destino, ser engolido por aquele que mais amava. Ele olhou para os lados, e entre a imensidão do mar percebeu um pedaço de terra. Seu coração bateu mais forte, seria uma ilha? George não pensou mais, apenas jogou-se na água e nadou. Nadou, nadou e nadou, até o fim de suas forças.

Na manhã do dia seguinte, desmaiado, chegou à terra firme. Foi resgatado por nativos, que o animaram com água e essências e o levaram até o vilarejo. Eles falavam uma língua incompreensível, George entendeu apenas que estava no Brasil.

Uma semana depois, já recuperado, George se pôs a viajar. Seu vocabulário era formado por uma única frase: mim George inglês, não falar português. Mesmo assim, ele conseguiu chegar até Santana do Livramento, Rio Grande do Sul. Gostou da cidade. Ele foi até a venda da praça e tomou uma cachaça. Mulheres bonitas passeavam pelas ruas de chão batido e George pensou que talvez este fosse um bom lugar pra morar. A polícia britânica nunca o acharia por aquelas bandas.

Se comunicou com o dono da venda com mímicas e algumas palavras soltas, mas se fez entender. George queria saber aonde havia moças em idade para casar. O dono da venda apontou para uma casa no fim da rua. George agradeceu, pagou a bebida e saiu. Havia vento, mas o dia estava ensolarado. Ele inspirou fundo, sentindo o ar fresco encher seus pulmões e caminhou em direção a casa.

Chegando lá se apresentou da única maneira que sabia, "mim George inglês, não falar português". Não foi muito eloquente, mas George era um homem carismático, de sorriso aberto. O patriarca consentiu em lhe dar a mão da filha mais velha. Ela tinha ido lavar roupa no rio, mas voltaria em breve.

George aguardou tomando chimarrão. O patriarca falava muito, e George sem entender nada, apenas sorria e balançava a cabeça. Então ela chegou. Trazia uma trouxa de roupas na mão e os cabelos molhados enrolados no alto da cabeça. Ela era linda, e ao vê-lo abaixou os olhos timidamente. George se aproximou e pegou em sua mão. O patriarca lhe disse, "Bernardina, minha filha, esse gringo quer casar com você". Ela sentiu um frio na barriga, mas disfarçou. Disse apenas, "se o senhor meu pai assim quer, eu caso".

E George Hardem então casou-se com Bernardina Quines. Da união dos dois nasceram muitos filhos, inclusive meu bisavô. Gosto de pensar que foram felizes, se amaram muito e tiveram uma vida tranquila. A polícia britânica não apareceu por lá, mas George Hardem nunca mais voltou ao mar. Apenas à noite, em seus sonhos. Nesses sonhos ele voltava ao seu navio, deitava na proa, ficava olhando as estrelas e escutando o barulho do mar.