4.5.04

Dia 4 - Relato

Começo o relato do acidente de carro dizendo que esse foi o episódio mais violento da minha vida. É certo que existem coisas muito mais violentas do que essa batida, mas eu nunca vivenciei nenhuma.

É uma sensação mista, de impacto físico e psicológico. Além da dor que senti, tive que lidar com o sentimento de impotência. Sabia que o acidente era inevitável, nada do que eu fizesse impediria aquele carro em altíssima velocidade de bater em mim, mas não consegui deixar de me perguntar "o que eu faço agora?"

Gritei algo tipo "oh, não', quando percebi que o carro não ia frear, seguido de 3 "ai, meu Deus", um pra cada impacto. Um "ai, meu Deus" quando o carro bateu na minha lateral, outro quando meu carro subiu na calçada e bateu num canteiro de cimento e o derradeiro quando bati no muro.

Depois de sair do carro e ver que o amigo que estava comigo estava bem, uma enxurrada de pensamentos me invadiu.

Ao constatar o lamentável estado de destruição total do meu carro pensei: puta merda, não posso dar undo. Já havia pensado isso algumas vezes depois de dizer algo na hora errada, ou fazer uma escolha que se revelou desastrosa. Mas nunca lamentei tanto a inexistência do control+z. (no meu caso command+z)

Depois fui tomada por uma súbita raiva e me virei pra moça de bolsa Louis Vitton parada na minha frente e falei ríspida: que raios tu tava pensando??? Ela parecia muito abalada e respondeu que não sabia e a culpa era toda dela. Isso me desarmou. Me fez ter pena dela. Afinal ela era responsável por tudo aquilo, e definitivamente também não tinha o poder do undo.

Logo após me dei conta de que *eu* era responsável pelo meu amigo e dei graças aos céus que ele estava bem. Mesmo que a culpa real fosse da mulher, eu estava dirigindo o carro.

Percebi em seguida que as minhas pernas doiam muito, e pedi pra sentar.

Sentada, enquanto aguardava a brigada chegar me envolvi em outro tipo de questionamento, do tipo "e se". E se a minha reunião tivesse terminado um pouco mais tarde o acidente teria acontecido? E se eu tivesse demorado mais a sair ela teria me acertado? E se eu não tivesse passado em casa pra pegar enzimas, teria sido igual? E se eu tivesse apenas demorado mais pra pegar as enzimas, como seria?

E se eu tivesse dobrado na Botafogo ao invés de seguir na Múcio, teria encontrado com a moça de bolsa Louis Vitton no cruzamento? E se eu tivesse tido tempo de frear? E se o sinal da esquina anterior estivesse aberto e não fechado? E se eu tivesse ficado em casa naquela segunda chuvosa? E se, e se, e se. Existe destino? Eu estava fadada a sofrer esse acidente? Não sei.

O que me irrita agora, que estou com a perna imobilizada da coxa até o tornozelo é que isso é um fator incrivelmente limitador. Sei que poderia ter sido muito pior e talvez eu não estivesse aqui pra fazer esse relato. Mas ainda assim vou perder muitas aulas no mestrado, tive que adiar um dos cursos de roteiro e o outro pode seguir o mesmo caminho. Tenho que ficar deitada com a perna esticada o dia inteiro e tudo o que eu quero fazer tenho que pedir para os outros fazerem por mim. Mas again, estou viva.

Meu último pensamento ontem antes de dormir foi que realmente, assim como é mostrado nos filmes, em situações traumáticas o tempo se modifica, fica elástico. As coisas ficam um pouco mais lentas, se percebe os movimentos de forma diferente, as cores e texturas ficam ligeiramente alteradas. Mas não exatamente como nos filmes.

Não é um slow motion total, é apenas um pouco mais lento, tipo 1/5 ou 1/6 da velocidade normal. Pelo menos comigo foi assim. E esse pequeno filminho que criei na minha cabeça ficou se repetindo ao longo do dia, e a cada exibição ele se modificava um pouquinho, somando ou subtraindo elementos. Mas a qualidade emocional, essa permanece a mesma. Afinal, foi o episódio mais violento da minha vida.